segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Cromo

andamos pelo mundo
experimentando a morte
dos brancos cabelos das palavras
atravessamos a vida com o nome do medo
e o consolo dalgum vinho que nos sustém
a urgência de escrever
não se sabe para quem

o fogo a seiva das plantas eivada de astros
a vida policopiada e distribuída assim
através da língua... gratuitamente
o amargo sabor deste país contaminado
as manchas de tinta na boca ferida dos tigres de papel

enquanto durmo à velocidade dos pipelines
esboço cromos para uma colecção de sonhos lunares
e ao acordar... a incoerente cidade odeia
quem deveria amar

o tempo escoa-se na música silente deste mar
ah meu amigo... como invejo essa tarde de fogo
em que apetecia morrer e voltar

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

89


Será que nos resta muito depois disto tudo, destes dias assim, deste não-futuro que a gente vive? (...) Bom, tudo seria mais fácil se eu tivesse um curso, um motorista a conduzir o meu carro, e usasse gravatas sempre. Às vezes uso, mas é diferente usar uma gravata no pescoço e usá-la na cabeça. Tudo aconteceu a partir do momento em que eu perdi a noção dos valores. Todos os valores se me gastaram, mesmo à minha frente. O dinheiro gasta-se, o corpo gasta-se. A memória. (...) Não me atrai ser banqueiro, ter dinheiro. Há pessoas diferentes. Atrai-me o outro lado da vida, o outro lado do mar, alguma coisa perfeita, um dia que tenha uma manhã com muito orvalho, restos de geada… De resto, não tenho grandes projectos. Acho que o planeta está perdido e que, provavelmente, a hipótese de António José Saraiva está certa: é melhor que isto se estrague mais um bocadinho, para ver se as pessoas têm mais tempo para olhar para os outros.



Al Berto, in "Entrevista à revista Ler (1989)"

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

1/2 de vida



As coisas não se vêem por metade.
Ou passas e as fitas de repente
pousando um longo olhar de eternidade
que logo vai aos fumos da memória,
ou viverás com elas lentamente,
gastando-te com elas, nelas vendo-te
como em espelho que te sobrevive.

Mas o passar como quem visse tudo
e ali ficasse não ficando a vida
faz que as coisas se cubram de um cristal
opaco e as diluindo em corpo falso,
aquele que é quanto então mereces.


Jorge de Sena

17.07.1971


domingo, 9 de setembro de 2012

25 do oito

Quando ficamos como assim, a ouvirmo-nos e a falarmos-nos, somos capazes de descobrir muito mais do que todos eles, obedientes e assustados. Como aqui, assim, estas palavras a levarem esta voz fazem-nos saber que estamos juntos, mesmo quando não há uma sala com estas paredes e só conseguimos duvidar e duvidar desta verdade. Estamos juntos, mesmo quando nos separamos pelas ruas e, dentro de nós somos um exército de segredos, mesmo quando nos escondemos do mundo que desejámos e que desejamos indescontroladamente, desincomparavelmente, como um silêncio que mente e mente e não mente.
Estamos juntos no silêncio, apesar desta voz carregada por estas palavras, apesar das formas todas dos nossos corpos e dos desenhos que somos capazes de fazer com o olhar. As nossas mãos procuram-se à noite, dentro das luzes apagadas. Sabemos quem somos. Somos muitos e sabemo-nos reconhecer. Esperamos muito mais do que a madrugada. Temos a força de para sempre, aprendemos a renúncia de nunca mais. A disciplina está enterrada naquilo que não é medo, é força, e que nos protege, que nos protegemos a nós próprios. As palavras são pedras. As certezas perseguiram-nos e abrandámos para que nos alcançassem. Agora, controlamos pontes e quotidianos. Agora, esta voz dirige-se para o teu rosto. Nada nos é impossível. Nem mesmo o impossível nos é impossível. Explicamo-nos uns aos outros e, sem que ninguém nos perturbe, encontramo-nos sempre como agora, aqui, assim, como agora, aqui, assim.

sábado, 18 de agosto de 2012

Plenos Poderes


Difundi-me, não há dúvida,
troquei de existências,
mudei de pele, de lâmpada, de ódios,
tive que o fazer
não por lei, não por capricho,
mas sim por escravidão,
acorrentou-me cada novo caminho,
ganhei gosto à terra, a toda a terra.

E de repente disse adeus, recém-chegado,
com a ternura ainda recém-partida
como se o pão abrisse e de repente
fugisse da mesa toda a gente.

Sabe-se que o que regressa não partiu,
e assim na vida andei e desandei
mudando de roupa e de planeta,
habituando-me à companhia,
à multidão desterrada,
à grande solidão dos sinos.

                             Pablo Neruda

                                             

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

2 tropeções de ternura















 
É simples a separação.
Adeus.
Desenlaçado o último abraço, uma pressa de dar costas um ao outro.
Já não há gestos. O derradeiro (impossível) seria não desfazer
o abraço.
Pressa de cada um retomar o outro na teia lenta da remembrança.
Não desfazer o abraço. Ficar face encostada ao niagara dos
cabelos.
Sobram fotografias, voz no gravador, um bilhete na caixa do correio.
Sobra o telefone.
Tensão-telefone. Possibilidade de voz não póstuma.
No gravador, voz de ontem, de anteontem. De há anos.
Sobra o telefone. Mudo.
Retininte?
Sobrarão as cartas. Sobra a espera.
Na teia lenta da remembrança, retomo-te em memória recente: na
praia de ternura onde nos enrolámos e desenrolámos deseperados
de separação.
Sobra a separação.

Alexandre O'Neill

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

VRSA II


E eu caminhei no hospital
Onde o branco é desolado e sujo
Onde o branco é a cor que fica onde não há cor
E onde a luz é cinza

 E eu caminhei nas praias e nos campos
O azul do mar e o roxo da distância
Enrolei-os em redor do meu pescoço
Caminhei na praia quase livre como um deus

Não perguntei por ti à pedra meu Senhor
Nem me lembrei de ti bebendo o vento
O vento era vento e a pedra pedra


E isso inteiramente me bastava
E nos espaços da manhã marinha
Quase livre como um deus eu caminhava
E todo o dia vivi como uma cega

Porém no hospital eu vi o rosto
Que não é pinheiral nem é rochedo
E vi a luz como cinza na parede
E vi a dor absurda e desmedida

Sophia de Mello Breyner Andresen, 1995

terça-feira, 17 de julho de 2012

Intendente





Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Dance me to the end of love


“Act the way you'd like to be and soon you'll be the way you act.”

Leonard Cohen

sábado, 16 de junho de 2012

O Frio à distância

A situação é esta: os campos eram puros e limpos, eu ateei muitos fogos, tinha fósforos e gasolina, agora estou no exacto centro de todos eles, cercam-me por todos os lados que não existem para fugir, e espero pelo incêndio, apenas espero.
 
José Luís Peixoto

Lisboa, 1990-1991

segunda-feira, 11 de junho de 2012

What do we have for entertainment?


"I'd like to say that people . . . people can change anything they want to. And that means everything in the world. Show me any country . . . and there'll be people in it just trying to take their humanity back into the center of the ring . . . . And follow that for a time. You know, think on that. Without people you're nothing."

                                                                                                                 Joe Strummer




sábado, 2 de junho de 2012

Baixa



Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Dissessem.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Porquê
Esperar?
- Tudo é
Sonhar.

Fernando Pessoa

domingo, 15 de abril de 2012

Céu em Fogo





Só podemos imaginar aquilo que vimos ou de que nos lembramos. Se vimos, a fantasia chama-se memória. Se apenas nos lembramos sem nos recordarmos de o ter visto - é nesse caso fantasia pura. O Homem que mais reminiscências guardou - será aquele cuja fantasia mais se alargará. Génios serão pois os que menos se esquecerem.
Mário de Sá-Carneiro

domingo, 1 de janeiro de 2012