sábado, 18 de agosto de 2012

Plenos Poderes


Difundi-me, não há dúvida,
troquei de existências,
mudei de pele, de lâmpada, de ódios,
tive que o fazer
não por lei, não por capricho,
mas sim por escravidão,
acorrentou-me cada novo caminho,
ganhei gosto à terra, a toda a terra.

E de repente disse adeus, recém-chegado,
com a ternura ainda recém-partida
como se o pão abrisse e de repente
fugisse da mesa toda a gente.

Sabe-se que o que regressa não partiu,
e assim na vida andei e desandei
mudando de roupa e de planeta,
habituando-me à companhia,
à multidão desterrada,
à grande solidão dos sinos.

                             Pablo Neruda

                                             

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

2 tropeções de ternura















 
É simples a separação.
Adeus.
Desenlaçado o último abraço, uma pressa de dar costas um ao outro.
Já não há gestos. O derradeiro (impossível) seria não desfazer
o abraço.
Pressa de cada um retomar o outro na teia lenta da remembrança.
Não desfazer o abraço. Ficar face encostada ao niagara dos
cabelos.
Sobram fotografias, voz no gravador, um bilhete na caixa do correio.
Sobra o telefone.
Tensão-telefone. Possibilidade de voz não póstuma.
No gravador, voz de ontem, de anteontem. De há anos.
Sobra o telefone. Mudo.
Retininte?
Sobrarão as cartas. Sobra a espera.
Na teia lenta da remembrança, retomo-te em memória recente: na
praia de ternura onde nos enrolámos e desenrolámos deseperados
de separação.
Sobra a separação.

Alexandre O'Neill

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

VRSA II


E eu caminhei no hospital
Onde o branco é desolado e sujo
Onde o branco é a cor que fica onde não há cor
E onde a luz é cinza

 E eu caminhei nas praias e nos campos
O azul do mar e o roxo da distância
Enrolei-os em redor do meu pescoço
Caminhei na praia quase livre como um deus

Não perguntei por ti à pedra meu Senhor
Nem me lembrei de ti bebendo o vento
O vento era vento e a pedra pedra


E isso inteiramente me bastava
E nos espaços da manhã marinha
Quase livre como um deus eu caminhava
E todo o dia vivi como uma cega

Porém no hospital eu vi o rosto
Que não é pinheiral nem é rochedo
E vi a luz como cinza na parede
E vi a dor absurda e desmedida

Sophia de Mello Breyner Andresen, 1995