“A vida em si, cada momento da vida, cada gota sua, aqui, neste instante, agora, ao sol, era suficiente. Demasiado, até.”
Há já alguns anos, no Porto, eu quase tive uma rua assim, e um jardim profundo muito perto, e outro, não muito longe, onde a brancura dos cisnes abandonava a água para invadir a sombra azul dos jacarandás.
As casas não se distinguiam umas das outras na sua banalidade forrada de azulejos, sem degraus exteriores a descer ou a subir ao portal, é certo.
As cidades, por toda a parte, tornaram-se insuportáveis. Só algumas muito raras escapam à danação: terão que ser pequenas e de província, naturalmente.
O Porto, além das privilegiadas residências cercadas de muros espessos como muralhas, tem ainda um ou outro jardim, uma ou outra rua a lembrar aquela em que me refugiei. Mas a cidade o que tem, sobretudo, é carácter – um carácter que faz do cidadão do Porto o mais belo estilo de se ser português.
Esta cidade, cujo espírito exasperado e viril fez do granito escuro das suas pedras espelho da própria alma; esta cidade, cuja gente tem uma rudeza de fala e de gestos que lhe vai a matar com o seu ódio à futilidade e à hipocrisia; esta cidade, que herdou da aspereza do solo e do carão duro do rio uma solidez que leva às coisas da arte e do coração; esta cidade, deixa-me repeti-lo, com o seu carácter eminentemente democrático e popular, torna, por comparação, o resto do país, com excepção do Alentejo e do Alto Douro, completamente amorfo. A maior virtude do Porto foi Almeida Garrett, o mais genial dos seus filhos, quem a pôs em evidência, ao dizer que “se, na nossa cidade, há muito quem troque o ‘b’ por ‘v’, há muito pouco quem troque a liberdade pela servidão”. (…)
O Porto é a mais fechada das nossas cidades (daí parecer tão secreta), e eu nunca procurei ganhar a sua confiança, quando a conheci já pertencia a outras luzes, a outras sombras. Vivendo nela como se nela não vivesse. (...)
Os pescadores do paredão, cuja arte de paciência me lembra os miniaturistas persas, sonhando com fanecas ou enguias ou robalos; vou esquecer-me disso, porque o bonito é o repuxo, sobretudo quando o sol se mistura com as águas, e tudo é poeira doirada, como o Cabedelo, que volto a contemplar. Esta é a luz que gostaria de levar nos olhos quando morrer – a luz da Foz, atravessada por duas ou três gaivotas.
Eugénio de Andrade