in: Porto sempre
Janeiro 2011
Entrevista com Carlos Mota Cardoso, Psiquiatra e Professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Em declarações recentes, o professor e filósofo José Gil referia-se a estes tempos de crise como cenários potenciadores de um certo «medo de existir» e de um individualismo exacerbado, justamente devido à incerteza e ao receio do futuro. Acompanha esta leitura, ou, pelo contrário, haverá ainda, em sua opinião, lugar ao optimismo individual e colectivo?
Acompanho. O “medo de existir” que refere relaciona-se com a amargura que tolda a intimidade de cada um quando se tenta perscrutar os caminhos do futuro. O homem de hoje vive mergulhado num mar de dúvidas e de incertezas face à sua condição humana. Esbraceja, só ou quase só, numa sociedade profundamente mediatizada e, por consequência, devassada. Daí encapsular-se mais e mais em si próprio. Não escapa a um certo tipo de solidão e de angústia que, escorrendo nas profundezas do ser, lhe martiriza a alma. É esta uma marca do nosso tempo. Trata-se duma solidão curiosa e paradoxal, na medida em que acontece justamente nos locais onde o homem está, aparentemente, mais acompanhado, ou seja, mais comprimido nas malhas dos grandes aglomerados urbanos. O homem experimenta-se fisicamente acompanhado, mas sente um vazio mortal na dimensão humana dessa parceria, particularmente no campo afectivo.
E isso deve-se a quê, na sua óptica?
Isto sucede, a meu ver, por três ordens de razões. A primeira é que somos netos dum positivismo que, em certos períodos, se revelou galopante e desenfreado. Daqui resultou, de alguma forma, um indiscutível benefício com o acesso a meios técnicos impensáveis há 50 anos. Mas também resultou uma inevitável subordinação do homem à máquina. Para compreendermos esta subjugação basta pensar na importância que tem hoje, por exemplo, o telemóvel.
A segunda razão prende-se com o fenómeno da comunicação cultivada na modernidade. Trata-se duma comunicação epidérmica. Não há penetração na interioridade do outro. No encontro existencial apenas se trocam sinais de conveniência. Ou seja, não se constrói um verdadeiro encontro existencial, a não ser no reduto íntimo da família ou no contexto de ligações afectivas similares. A vida teatralizou-se excessivamente. As relações tecem-se hoje de forma surpreendentemente rápida. Porém, raramente escapam ao fenómeno da competição que as fermenta e, muitas vezes, inquina.
A terceira razão relaciona-se com o desaparecimento das distâncias e a quase anulação do espaço. Os espaços siderais, outrora repletos de enigmas, são hoje preenchidos por sondas e satélites lançados da terra ou pelas ondas electromagnéticas que permitem o milagre da televisão ou da internet. Uma e outra mudaram radicalmente a vida de cada um, impondo severos limites e silêncios forçados ao relacionamento interpessoal.
Do ponto de vista psicossocial, o actual clima criado poderá, ou não, ser gerador de distúrbios psíquicos e afectivos, capazes de afectar a nossa qualidade de vida, que é como quem diz, a nossa felicidade enquanto cidadãos, bem como os princípios e valores da sociedade que nos cerca?
Da resposta anterior infere-se que assistimos hoje em dia a uma profunda alteração psicocultural da sociedade. Esta mudança tem raízes antigas. O primado da racionalidade reforçado por algumas doutrinas materialistas acabou por subalternizar a vertente simbólica da vida com consequências para a criação duma nova ordem psicossocial. Nasceu, de alguma forma, um novo tipo de angústia cuja matriz emerge do vazio resultante da desertificação do limbo simbólico da existência. A racionalidade nua, tal como algumas correntes defendem e propagam, não consegue preencher os vazios que outrora verdejavam de projectos humanos coloridos de valores simbólicos nos campos prometidos do futuro.
De acordo com a sua formação e experiência clínica no campo da psiquiatria e também enquanto profundo observador da realidade social quotidiana, como caracteriza e diagnostica a situação? Tem-se deparado, por exemplo, com muitos desses casos nas consultas, por exemplo ao nível de estados de depressão e angústia? De que é que, actualmente, as pessoas mais se queixam?
O futuro abre-se diante de nós como uma espécie de estrada por percorrer. Sabemos que ela nos conduz inexoravelmente à morte. Uma morte que em condições normais entrevemos como algo muito esfumado nas brumas do tempo mais ou menos distante. E porquê esfumado e distante quando todos sabemos que pertence à vida de cada um? Porque é-nos dada a possibilidade de semearmos nos tais campos do futuro projectos de vida que com mais ou menos esforço vamos acarinhando, abandonando ou realizando. Os projectos são como as árvores duma floresta que encobrem o horizonte que a limita. Pensemos por exemplo no casamento, nos filhos, no trabalho, enfim na realização da própria vida. Semeamos hoje para colher amanhã. Ora, se a fogueira que outrora aquecia a família perdeu calor, se os valores do trabalho se reduziram à dimensão aritmética, se os valores afectivos se superficializam, se a ética se estreita nas malhas da conveniência e se a estética se consome no lume fátuo do erotismo mais primário, o que resta? O vazio à nossa frente. A angústia do existir, o abatimento, a depressão e a legião de doenças psicossomáticas que castigam tanta gente e que são responsáveis por tanto sofrimento silencioso constituem a resultante final desse vazio.
Janeiro 2011
Entrevista com Carlos Mota Cardoso, Psiquiatra e Professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Em declarações recentes, o professor e filósofo José Gil referia-se a estes tempos de crise como cenários potenciadores de um certo «medo de existir» e de um individualismo exacerbado, justamente devido à incerteza e ao receio do futuro. Acompanha esta leitura, ou, pelo contrário, haverá ainda, em sua opinião, lugar ao optimismo individual e colectivo?
Acompanho. O “medo de existir” que refere relaciona-se com a amargura que tolda a intimidade de cada um quando se tenta perscrutar os caminhos do futuro. O homem de hoje vive mergulhado num mar de dúvidas e de incertezas face à sua condição humana. Esbraceja, só ou quase só, numa sociedade profundamente mediatizada e, por consequência, devassada. Daí encapsular-se mais e mais em si próprio. Não escapa a um certo tipo de solidão e de angústia que, escorrendo nas profundezas do ser, lhe martiriza a alma. É esta uma marca do nosso tempo. Trata-se duma solidão curiosa e paradoxal, na medida em que acontece justamente nos locais onde o homem está, aparentemente, mais acompanhado, ou seja, mais comprimido nas malhas dos grandes aglomerados urbanos. O homem experimenta-se fisicamente acompanhado, mas sente um vazio mortal na dimensão humana dessa parceria, particularmente no campo afectivo.
E isso deve-se a quê, na sua óptica?
Isto sucede, a meu ver, por três ordens de razões. A primeira é que somos netos dum positivismo que, em certos períodos, se revelou galopante e desenfreado. Daqui resultou, de alguma forma, um indiscutível benefício com o acesso a meios técnicos impensáveis há 50 anos. Mas também resultou uma inevitável subordinação do homem à máquina. Para compreendermos esta subjugação basta pensar na importância que tem hoje, por exemplo, o telemóvel.
A segunda razão prende-se com o fenómeno da comunicação cultivada na modernidade. Trata-se duma comunicação epidérmica. Não há penetração na interioridade do outro. No encontro existencial apenas se trocam sinais de conveniência. Ou seja, não se constrói um verdadeiro encontro existencial, a não ser no reduto íntimo da família ou no contexto de ligações afectivas similares. A vida teatralizou-se excessivamente. As relações tecem-se hoje de forma surpreendentemente rápida. Porém, raramente escapam ao fenómeno da competição que as fermenta e, muitas vezes, inquina.
A terceira razão relaciona-se com o desaparecimento das distâncias e a quase anulação do espaço. Os espaços siderais, outrora repletos de enigmas, são hoje preenchidos por sondas e satélites lançados da terra ou pelas ondas electromagnéticas que permitem o milagre da televisão ou da internet. Uma e outra mudaram radicalmente a vida de cada um, impondo severos limites e silêncios forçados ao relacionamento interpessoal.
Do ponto de vista psicossocial, o actual clima criado poderá, ou não, ser gerador de distúrbios psíquicos e afectivos, capazes de afectar a nossa qualidade de vida, que é como quem diz, a nossa felicidade enquanto cidadãos, bem como os princípios e valores da sociedade que nos cerca?
Da resposta anterior infere-se que assistimos hoje em dia a uma profunda alteração psicocultural da sociedade. Esta mudança tem raízes antigas. O primado da racionalidade reforçado por algumas doutrinas materialistas acabou por subalternizar a vertente simbólica da vida com consequências para a criação duma nova ordem psicossocial. Nasceu, de alguma forma, um novo tipo de angústia cuja matriz emerge do vazio resultante da desertificação do limbo simbólico da existência. A racionalidade nua, tal como algumas correntes defendem e propagam, não consegue preencher os vazios que outrora verdejavam de projectos humanos coloridos de valores simbólicos nos campos prometidos do futuro.
De acordo com a sua formação e experiência clínica no campo da psiquiatria e também enquanto profundo observador da realidade social quotidiana, como caracteriza e diagnostica a situação? Tem-se deparado, por exemplo, com muitos desses casos nas consultas, por exemplo ao nível de estados de depressão e angústia? De que é que, actualmente, as pessoas mais se queixam?
O futuro abre-se diante de nós como uma espécie de estrada por percorrer. Sabemos que ela nos conduz inexoravelmente à morte. Uma morte que em condições normais entrevemos como algo muito esfumado nas brumas do tempo mais ou menos distante. E porquê esfumado e distante quando todos sabemos que pertence à vida de cada um? Porque é-nos dada a possibilidade de semearmos nos tais campos do futuro projectos de vida que com mais ou menos esforço vamos acarinhando, abandonando ou realizando. Os projectos são como as árvores duma floresta que encobrem o horizonte que a limita. Pensemos por exemplo no casamento, nos filhos, no trabalho, enfim na realização da própria vida. Semeamos hoje para colher amanhã. Ora, se a fogueira que outrora aquecia a família perdeu calor, se os valores do trabalho se reduziram à dimensão aritmética, se os valores afectivos se superficializam, se a ética se estreita nas malhas da conveniência e se a estética se consome no lume fátuo do erotismo mais primário, o que resta? O vazio à nossa frente. A angústia do existir, o abatimento, a depressão e a legião de doenças psicossomáticas que castigam tanta gente e que são responsáveis por tanto sofrimento silencioso constituem a resultante final desse vazio.
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