Somos feitos de memória. E talvez, quem sabe?, de sonho. Mas também os nossos sonhos são provavelmente memória, pois que a imaginação é, como observa Borges, uma espécie de arte combinatória da memória, e os sonhos de futuro construímo-los sobre os desejos e os medos do passado. Por isso os políticos sem passado (como diria o futeboleiro Octávio Machado, vocês sabem do que estou a falar) tão ansiosamente procuram, seja evocando acontecimentos que não viveram seja citando livros que não leram, inventar para si alguma forma de passado.
Pelo Café Piolho, agora centenário, passou, pulsante de sonhos, grande parte da geração responsável pelo nosso sujo e mesquinho presente, e pergunto-me muitas vezes como foi possível que tantos se tenham entretanto transformado naquilo que combatiam. No próximo sábado 20 de Março, pelas 17 horas, está marcada para o Piolho uma tertúlia sobre as lutas estudantis, de que o lugar foi, nos anos 60, um semovente quartel. Será um encontro melancólico, povoado de fantasmas, pois se o Piolho é, para muitos, memória de fidelidade a si mesmos, para outros é o emblema da traição.
Longe vão os tempos em que os oponentes ao fascismo se reuniam no Piolho, café onde se discutiam ideias e realizavam tertúlias nas noites do Porto. Local associado aos estudantes universitários, tem como característica fundamental a clientela diversificada e o ambiente informal: ao lado do professor pode estar um aluno, junto ao advogado ou arquitecto o desempregado, a freira que aparece à tarde apanha com o fumo do cigarro do "mitra". Âncora D'Ouro, nome original do espaço, adulterado pelos estudantes durante os anos 50 que, diz-se, chamavam "piolhice" aos docentes universitários que também frequentavam o café.
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